1807–1814
Há episódios da nossa história que esquecemos por conveniência. A curta mas brusca turbulência criada no vortex das invasões napoleónicas e a tão rápida sucessão de acontecimentos por ela gerada, é um destes momentos que, embora fundador, embaraça aquilo que chamamos memória colectiva.
Quando, em Novembro de 1807, o Marechal Junot marchou sobre Lisboa como faca em manteiga, ainda viu na barra a esquadra que transportava a família real portuguesa em fuga para o Brasil. Com ela abalavam as melhores cabeças e os mais fidalgos brasões da corte, assim decapitando o reino. Bem pressentiu a louca Rainha Maria que nunca mais haveria de ver os areais de Belém, quando aos uivos se fincou nos varais da carruagem até ficarem alvos os nós dos dedos e serem os mordomos obrigados a quase lhe partir a mão para a soltar e embarcar.
Embora roto e exausto, o exército napoleónico garantiu o sossego público sem sobressalto de maior e com aliviada aprovação da burguesia e da pequenina nobreza lusitana que ficou para trás. O êxodo precipitado e atabalhoado da coroa retirou o pouco ânimo que sobrava aos partidários dos Braganças e deu alento às aspirações dos pedreiros livres. Porque uns entraram em Lisboa mal outros se foram, não houve azo a qualquer revolta ou golpe de mão.
Acto contínuo, Junot embrenhou-se nas questões administrativas do reino, para as quais levava indicações precisas do Imperador: aplicar o Tratado de Fontainebleau celebrado entre a França e a Espanha em Outubro desse ano de 1807, já o próprio Marechal se havia posto em marcha.
O corpo do que era Portugal foi retalhado em três partes: Os territórios compreendidos entre os rios Minho e Douro, foram regalados à recente dinastia dos Reis da Etrúria por troca com a Toscânia, que Napoleão tanto ambicionava. A cidade do Porto viu então flutuar o pavilhão azul e branco do juvenilíssimo Rei Carlos Luís, que por ter só 10 anos, se deixava governar por sua mãe a regente Maria Luíza de Borbón-Parma, filha do rei espanhol. A Invicta recebeu os monarcas com enorme gáudio pois assim via satisfeita uma velha ambição: a de ser uma capital europeia, a do Reino da Lusitânia Setentrional.
A província do Alentejo e o Reino dos Algarves passaram a formar um estado único, o Principado dos Algarves, e foi oferecida a Manuel de Godoy, o plenipotenciário valido de Carlos IV de Espanha, pelos magníficos serviços que prestara à coroa. Tamanha foi a satisfação deste plebeu – embora de coeva linhagem – em ascender à mais alta nobreza que, sem olhar a despesas celebrou o triunfo, deixando-se retratar por Goya, em pose majestática, na contemplação da bandeira conquistada.
O troço do meio que sobrou deste recortes, incorporando Trás-os-Montes, as Beiras, o Ribatejo e a Estremadura, que viria a designar-se tanto por Portugal propriamente dito, como por Lusitânia Meridional, sendo o maior e mais suculento, queria-o, em segredo, Junot para si mesmo. Desejava deste modo o Marechal antecipar-se aos feitos do seu camarada Jean-Baptiste Bernardotte que viria a ser entronizado rei da Suécia com o nome de Carl Johan, por ordem de Napoleão. E com o sucesso que hoje se reconhece.
Como é sabido, foi funesto o destino de tais planos. Com a debacle do Imperador Bonaparte em 1814 estes reinos dissolveram-se e reverteram para a coroa de Espanha conforme previa o próprio tratado de Fontainebleau. Para isso muito contribuiu o facto de os Braganças nunca terem regressado do Brasil, donde regeram um Império sui generis, afro-indo-sulamericano. Foram a única monarquia que se deslocou da velha Europa para as colónias e se estabeleceu no Novo Mundo.
Hoje a província do Minho integra a Galiza e a cidade do Porto contenta-se em ser a quarta da Região bem atrás de A Corunha e Vigo em grandeza e de Compostela em importância.
Aquilo que em tempos se chamava genericamente de Alentejo é agora a mancha de terra que liga a Estremadura ao mar.
Por seu lado o Algarve puxando os galões da sua velha condição de reino, resistiu a ser absorvido pela Andaluzia e alcandorou-se à posição de Região Autónoma.
O que a partir daqui foi designado por Reino de Portugal nunca perdeu certos e distintos privilégios, cujo fito era impedir que voltasse a haver motivos para uma sedição semelhante à de 1640. A coroa de Espanha foi pródiga e generosa com Lisboa, tratando a cidade como uma das jóias do reino, cuja importância nunca parou de crescer, até aos nossos dias.
Dizem os historiadores alternativos que poderia ter sido outro o desfecho deste momento histórico, se as diatribes no Parlamento Britânico do jovem cabo de guerra e deputado tory Arthur Wellesley, tivessem comovido o rei Jorge III a intervir na península Ibérica. Mas o monarca britânico considerou grande imprudência despejar uns batalhões do seu precioso exército nessas terras áridas num inútil exercício estratégico. Para mais, a vitória de Trafalgar, em Outubro de 1805, tinha garantido uma invulnerável supremacia britânica sobre os mares, mesmo estando os portos peninsulares na mão dos franceses. E o próprio Wellesley haveria de ter o seu instante de glória em Waterloo.
http://www.etudogentemorta.com/2010/08/1807/
quarta-feira, 2 de março de 2011
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